Como retratamos nos nossos últimos posts, a chikungunya é uma doença severa que está atualmente em surto no Brasil e no Paraguai. Porém, a doença não é nenhuma novidade. Muitas hipóteses estão sendo criadas para justificar o atual surto, mas hoje nosso texto te convida ao passado para entender dois pontos: a história epidemiológica da doença e a origem da diversidade genética do vírus causador.
O que é diversidade genética?
Diversidade genética se refere às diferenças em nível genético dentro de organismos de uma única espécie. No caso dos vírus, essa diversidade implica em modificações estruturais ou no metabolismo do organismo que podem, por exemplo, alterar a forma que o vírus ataca uma célula.
Adentrando na história, é bom relembrar um ponto: o mosquito Aedes aegypti é o responsável pela transmissão do vírus da dengue, chikungunya e também da zika. Esse mosquito é muito bem adaptado ao ambiente urbano. Com a contínua expansão da ocupação humana em áreas de floresta, ou outro tipo de vegetação nativa,
e os efeitos das mudanças climáticas, os mosquitos, muitas vezes infectados com vírus, ficam cada vez mais presentes. Para se ter uma ideia, o vírus da chikungunya (CHIKV) e zika (ZIKV) já emergiram em quase todos os países da América Latina desde meados dos anos 2000, sendo que o vírus da dengue (DENV) representa um problema de saúde pública nessa região há muito mais tempo.
O Paraguai é um país latino-americano cercado pela Bolívia, Brasil e Argentina e que possui todos os quatro sorotipos da dengue registrados. Análises filogenéticas² mostram que a diversidade genética do vírus da dengue no Paraguai está estreitamente relacionada com a diversidade genética do vírus nos países vizinhos, em especial o Brasil. Dados sobre a diversidade genética do vírus da chikungunya, porém, são pouco conhecidos. Bom, agora é hora de pegar um chá, deixar a mente relaxada e se preparar para entender como os pesquisadores contribuíram para que possamos entender mais sobre a diversidade genética do CHIKV.
Análise filogenética?
Uma análise filogenética é um tipo de análise que se baseia em compreender e comparar diferenças a partir de dados moleculares.
Para iniciar o estudo, amostras anônimas de pessoas que tinham arboviroses foram obtidas pelo Laboratorio Central de Salud Publica de Asunción. Esse laboratório recebe amostras de todo o país, sendo que as amostras eram representativas de quatro departamentos (o equivalente a estados no Brasil): Central, Assunção, Paraguarí e Amambay, locais onde ocorreram a maior parte dos casos de dengue e chikungunya entre 2014 e 2018. O material genético foi extraído das amostras selecionadas e submetido ao RT-qPCR, uma técnica molecular capaz de detectar a presença do vírus da chikungunya em amostras biológicas. Os resultados obtidos foram comparados com as informações já conhecidas para investigar a origem e como ocorreu a distribuição territorial do vírus da chikungunya no Paraguai. Um resumo pode ser observado na imagem 1.
Imagem 1 - Resumo do procedimento

Fonte: Elaborado pelo autor
A primeira epidemia de chikungunya no Paraguai: 2014 e 2015
Das amostras testadas e que deram positivas para a presença do vírus da chikungunya, uma parte significativa delas estava em estado bom suficiente para ter seu genoma³ sequenciado. Com seu genoma sequenciado, foi possível dividir o vírus em dois genótipos: Asiático e ECSA. A partir disso, foi possível traçar sua origem e hipotetizar uma linha temporal para entender como o vírus da chikungunya foi importado e se espalhou pelo Paraguai.
Genoma?
Genoma se refere a toda informação genética que é transmitida de geração a geração de um dado organismo.
Os primeiros surtos do genótipo asiático do CHIKV nas Américas foram relatados nas ilhas de São Martinho e Martinica em dezembro de 2013. O vírus se espalhou rapidamente no Caribe e na América Central em 2014, com transmissões locais relatadas em quase todos os territórios dessas regiões. A análise genética realizada estimou que a origem geográfica da variante circulante no Paraguai em 2015 veio de Porto Rico, um território que fica no Caribe. Isso permitiu traçar uma origem epidemiológica dos casos, levando a crer que provavelmente o primeiro caso veio de uma família que se infectou em Porto Rico e, ao retornar ao Paraguai ainda com a doença, deu origem à infecção autóctone (dentro do próprio local, ou seja, dentro do Paraguai) começassem. É importante lembrar que a transmissão do vírus se dá pela picada do Aedes aegypti quando o mesmo já picou uma pessoa infectada. A partir do primeiro caso autóctone em fevereiro de 2015, um crescente número de infecções foi reportado, com aproximadamente 10 mil casos que afetaram principalmente os Departamentos Central, Assunção e Paraguarí.
A segunda epidemia: 2016 e 2017
Em 2016, a distribuição de casos no Paraguai foi muito semelhante à de 2015. Dessa vez, porém, uma nova linhagem se estabeleceu no país. Os dados demonstram que provavelmente a nova linhagem foi introduzida no departamento de Paraguarí em algum momento entre junho de 2015 e janeiro de 2016, com origem na América Central. Felizmente, o ano de 2017 foi marcado por pouquíssimos casos de chikungunya no Paraguai. Enquanto isso ocorria, o Brasil foi fortemente afetado por uma epidemia com vários milhares de casos. Ok, mas o que o Brasil tem com essa história? Voltando um pouco no passado, duas distintas linhagens foram detectadas no Brasil no final de 2014: o genótipo ECSA, na região nordeste, e o genótipo asiático, na região norte. O genótipo asiático se manteve a poucos casos isolados, mas o ECSA se espalhou pelo Brasil. Como você já deve estar imaginando, o Aedes aegypti não precisa de passaporte para transitar entre os países.
A epidemia de 2018
O departamento de Amambay, que faz fronteira com o Brasil, foi fortemente afetado pelo genótipo ECSA ao fim de 2017. Esse genótipo, como dito anteriormente, era o responsável pela epidemia no Brasil, sugerindo que a transmissão veio de lá. Ademais, os dados genéticos obtidos indicam que provavelmente a transmissão veio das regiões nordeste ou norte do país, pois o vírus circulando em Amambay era especialmente semelhante aos vírus que circulavam essas regiões. A conclusão de que o vírus veio do Brasil, porém, não deve ser levada como verdade absoluta, já que outros fatores podem ter feito Amambay ter sido especialmente afetado na época. Como exemplo, há a possibilidade da exposição prévia ao genótipo asiático ter criado uma resistência ao vírus da chikungunya de forma geral, impedindo que o genótipo ECSA se espalhasse. Como Amambay foi o único dos quatro departamentos analisados que não teve uma grande quantidade de casos em 2015 e 2016, é possível que a população não tenha adquirido resistência e portanto tenha ficado mais suscetível ao vírus em 2018. De qualquer forma, o estudo foi capaz de revelar um complexo padrão de circulação do vírus no Paraguai e provar que as técnicas e ferramentas moleculares são poderosos aliados na luta contra as arboviroses.
Tem interesse em saber mais sobre como essa análise funcionou? Não esqueça de conferir o texto original do artigo clicando aqui.
Por Samuel dos Santos
Referência
Gräf T, Vazquez C, Giovanetti M, de Bruycker-Nogueira F, Fonseca V, Claro I, et al. Epidemiologic History and Genetic Diversity Origins of Chikungunya and Dengue Viruses, Paraguay. Emerging Infectious Diseases. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.3201/eid2705.204244